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A Europa do século XXI: seqüestros e tortura
« Temos que combater a tirania com os instrumentos dos tiranos? »

Depois de uma longa investigação sobre os seqüestros e vôos secretos da CIA na Europa, Dick Marty deixou estabelecido que, longe de serem casos isolados, eles se tornaram numa prática corrente. O presidente da Comissão de Assuntos Jurídicos do Conselho da Europa chegou à conclusão de que se trata de um sistema organizado com pleno conhecimento, mas com a cumplicidade dos Estados europeus.

22 de Março de 2007

Doutor em Direito, Dick Marty é membro do Conselho dos Estados da Confederação Helvética, membro da Assembléia parlamentar do Conselho da Europa, preside a Comissão de Assuntos Jurídicos e Direitos Humanos. Esta comissão lhe encomendou a elaboração dum informe sobre as alegações ligadas à existência de prisões secretas da CIA na Europa.


Dick Marty


Quando em novembro de 2005, o jornal The Washington Post revelou que agentes da Agência Central de Inteligência (CIA) tinham seqüestrado presumíveis terroristas muçulmanos e os tinham internado em centros ilegais, eu estava longe de imaginar o que me aconteceria durante os meses seguintes. Naquele mesmo dia, a ONG estadunidense Human Rights Watch publicava um informe que oferecia uma informação similar e afirmava, além disso, que os centros de detenção se encontravam na Polônia, Romênia e noutros países da Europa oriental. (Esses dados provinham de)] fontes situada, segundo soubemos posteriormente, nos próprios círculos da CIA.

Paralelamente, a cadeia de rádios ABC publicava no seu sítio de Internet uma informação análoga. Esta (informação) esteve on line somente meia hora já que o proprietário interveio para proibir sua difusão. Assim que soube da proibição, o jornalista apressou-se em avisar os seus amigos para que gravassem a notícia para a posteridade, antes que desaparecesse.

As revelações do Washington Post e da ONG Human Rights Watch não eram realmente uma novidade. O jornalista Stephen Grey, apenas para citar um exemplo, já tinha publicado artigos que falavam das “restituições extraordinárias” e de “desviação da tortura”, mas, naquele momento, a opinião pública não tomou verdadeira consciência do assunto.

Com isto estou dizendo que, é verdade, houve uma imprensa que falou dos seqüestros da CIA e de suas prisões secretas, mas, ao mesmo tempo pode se comprovar rapidamente que houve pressões intensas para fazê-a calar. Descobriu-se mais tarde que houve uma reunião na Casa Branca com os chefes de redação dos principais jornais americanos, (reunião) que teve provavelmente como objetivo indicar-lhes até que ponto teria resultado inoportuno difundir informações sobre a luta contra o terrorismo.

Desde o momento em que se conheceram estes indícios sobre a existência de prisões secretas na Europa, o Conselho da Europa reagiu imediatamente: a Assembléia do Parlamento ordenou um informe sobre esses seqüestros cuja existência, de comprovar-se, era evidentemente contrária à Convenção Européia de Direitos Humanos.

Quero lembrar que não há outra organização intergovernamental que tenha uma dimensão parlamentar tão acentuada e forte como o Conselho da Europa. A Assembléia se compõe de delegações dos diferentes parlamentos dos 46 países membros. Essas delegações representam os parlamentos nacionais, os diferentes partidos, têm que representar os dois sexos e, de forma proporcional, todas as minorias dos seus países; por exemplo, Suíça tem 6 deputados e 6 suplentes, ou seja, 12 deputados do Conselho Nacional e do Conselho de Estados ativos estão nesse recinto.

Quis a sorte que, dois dias depois das revelações do Washington Post e da ONG Human Rights Watch, a Comissão de Assuntos Jurídicos e Direitos Humanos da Assembléia parlamentar se reunisse em Paris para, precisamente, eleger seu novo presidente. Eu fui proposto e dessa forma que me encontrei à cabeça da Comissão.

O primeiro assunto que tive que enfrentar foi o dos seqüestros e as prisões secretas. Dei-me conta do que aquilo poderia representar várias semanas depois, quando em 25 de novembro de 2005 em Bucareste, a Assembléia teve que confirmar o mandato que a Comissão me tinha confiado. A coletiva de imprensa que anunciava minha nomeação como relator esteve a ponto de converter-se num motim, devido à quantidade de jornalistas. Foi só nesse momento que percebi plenamente o caráter explosivo do assunto e que meu trabalho tinha começado de verdade.

A imprensa me designa habitualmente como “o investigador” do Conselho da Europa. Na realidade, eu não era nem sou investigador autêntico, porque um investigador tem a possibilidade de citar pessoas, confiscar documentos, prender pessoas. Poderes que eu tive durante 15 anos como fiscal, mas que cruelmente careci durante esse trabalho! Decidi então lutar no mesmo terreno daqueles de quem suspeitava que haviam mantido as prisões secretas tentar, assim, realizar um trabalho de “inteligência”.

Mas, nesse terreno também me encontrava praticamente sem meios: tinha à minha disposição o secretariado da Comissão, porém, este estava totalmente sobrecarregado de trabalho. Finalmente consegui obter a ajuda de um jovem colaborador escocês de 28 anos. Juntos estabelecemos contatos com jornalistas de investigação independentes, com organizações não governamentais, com profissionais da “inteligência” de diferentes países. E começamos a procurar e compor as peças do quebra-cabeça.

Pela sua parte, a princípios de 2006, o Parlamento da União Européia também decidiu abrir uma investigação parlamentar sobre os vôos e as prisões secretas da CIA na Europa. Como Polônia é membro da União e Romênia aspira a sê-lo, o Parlamento queria verificar o acontecido. Criou-se uma comissão ad hoc de 46 deputados. Essa comissão, dotada de grandes meios – 13 pessoas do secretariado trabalhavam exclusivamente neste assunto -, reunia-se todas as semanas e realizava essencialmente audiências. Embora as audiências dessa comissão se desenvolvessem a portas fechadas, não se podia garantir o menor secreto. Enquanto que eu, trabalhando sozinho, tinha a possibilidade de garantir a confidencialidade das fontes. Portanto tínhamos uma metodologia e um enfoque completamente diferente.

Apresentei o primeiro relatório em janeiro de 2006 e o relatório principal a princípios de junho de 2006. Pude obter uma ajuda importante do Ministério Público de Milão. Eu conhecia pessoalmente os magistrados que estavam investigando a desaparição de Abu Omar, um ex-imã da mesquita de Milão, de origem egípcia, que havia obtido asilo político na Itália havia vários anos. Aqueles magistrados conseguiram provar que Abu Omar tinha sido seqüestrado em fevereiro de 2003 por agentes dos serviços secretos estadunidenses que o tinham transportado numa camionete até a base italiana da OTAN de Aviano. E de Aviano levaram-no até Ramstein, sobrevoando a Suíça. Depois, de Ramstein foi levado ao Cairo, onde foi entregue às autoridades egípcias que o torturaram.

Quero salientar aqui a importância da independência da justiça. O Ministério Público milanês atuou apesar da hostilidade manifesta do governo de Berlusconi, que fez tudo o possível para sabotar aquela investigação. Foi graças ao excelente trabalho dos magistrados e de certos serviços da polícia milanesa –fizeram um trabalho absolutamente notável- que 25 agentes da CIA implicados no rapto do imã foram identificados e que a promotoria de Milão pode emitir uma ordem internacional de prisão contra 22 deles.

Os magistrados milaneses puseram à minha disposição todas as atas da investigação. As examinei durante uma semana. E tive então a convicção moral de que estava diante da pista correta, de que estávamos perante um sistema, perante uma lógica sofisticada, que era impossível que tudo aquilo acontecesse sem a colaboração, em um ou outro nível, das autoridades locais e que o Pentágono e a CIA não podiam ser os únicos implicados nessas restituições extraordinárias.

O que significa o termo “restituições extraordinárias” utilizado oficialmente pela CIA?

Na prática isso consiste em seqüestrar pessoas suspeitas de ter um vínculo com o terrorismo, sem que essa acusação tenha sido verificada pela autoridade judiciário, e em entregá-las às autoridades de seus países de origem, onde são submetidas a interrogatórios brutais.

O objetivo dessas “restituições” secretas é conseguir informação mediante atos de tortura e obter, mediante a pressão de ameaças, que colaborem com os serviços secretos e que atuem praticamente como agentes infiltrados. Foi na base desse conceito de “restituições” que os agentes da CIA seqüestraram provavelmente mais de 100 pessoas. Até agora não temos dados precisos.

Quando a opinião pública soube desse sistema de “restituições extraordinárias”, isso deu lugar a duros debates nos Estados Unidos. Tratou-se de justificar juridicamente essas “restituições extraordinárias”. O jurista que elaborou a teoria desse sistema é o atual ministro de Justiça Alberto Gonzáles (já não o é mais hoje em dia, foi substituído, nrd) [1], quem no sistema estadunidense é à mesma vez o fiscal geral dos Estados Unidos.

Essas “restituições”, coisa que tinha parecido clara desde o princípio, supunham uma logística, e, portanto, a existência de centros de detenção intermediários. Soube-se depois que muitas das pessoas seqüestradas que não tinham sido entregues aos seus países de origem foram internadas em prisões secretas, já seja em Bagram (Afeganistão), em Abu em Abu Ghraib (Bagdá), o em Guantânamo.

Em 5 de dezembro de 2005, a senhora Rice, enquanto justificava as “restituições extraordinárias e a existência de Guantânamo” nos deu um importante indício quando declarou que “os Estados Unidos não tinham violado a soberania dos Estados europeus”. Eu penso que a senhora Rice estava dizendo, por uma vez, a verdade. Quando falou isso estava revelando que o que se tinha descoberto em diferentes países europeus sobre as prisões secretas se tinha feito com a colaboração dos serviços do Estado interessado [2]; por conseguinte, não houve violação da soberania por parte dos Estados Unidos. Assim se expressando, a senhora Rice quis lhes dizer aos europeus que estavam criticando os Estados Unidos: “não se façam de espertos que vocês mesmos utilizaram no passado o sistema das “restituições”.

A senhora Rice se referia assim ao caso do terrorista Carlos [3] seqüestrado no Sudão pelos serviços secretos franceses. Mas, a grande diferença com esse caso, (diferença) que ela ignorou, é que Carlos foi entregue à justiça francesa [4], que teve um juízo justo e que pode incluso recorrer à Corte Européia dos Direitos Humanos de Estrasburgo [5]. Portanto, existe aqui uma diferença fundamental. Esse tipo de “restituição” se pode defender quando as pessoas procuradas estão em países que não colaboram ou que não dispõem de meios para prender e entregar as pessoas procuradas e quando seu objetivo é entregar as pessoas assim seqüestradas aos órgãos da justiça comum.

No que se refere às nossas investigações foi, sobretudo, na Polônia e na Romênia que enfrentamos grandes dificuldades. A gente com a qual nos reunimos nesses países estava absolutamente aterrorizada com a idéia de que, se falassem, seus depoimentos comprometessem seus países. Na Romênia, sobretudo, onde se converteu numa questão de interesse nacional não dizer nada que pudesse pôr em perigo seu pedido de admissão na UE.

O papel de países como a Suíça na colaboração com os seqüestros da CIA resultou marginal, embora isso não deixe de colocar importantes interrogantes. Incluso países como a Suécia estão implicados, o que resulta muito inquietante. A política sueca entregou espontaneamente aos agentes da CIA dois egípcios que tinham obtido asilo. Há testemunhas da polícia que demonstram que os agentes da CIA infringiram maus tratos a esses egípcios, desde o mesmo aeroporto. Imediatamente do seu translado ao Cairo, sofreram as mesmas torturas que o imã Abu Omar. A Comissão da ONU contra a Tortura condenou a Suécia por esse caso.

Outros países, como Bósnia, também entregaram pessoas espontaneamente. Quando interrogamos as autoridades bósnias, estas admitiram esses fatos e os deploraram.

O Canadá também colaborou ativamente com a CIA nesses seqüestros ilegais. Esse país acaba incluso de pagar uma indenização de 10 milhões de dólares a uma pessoa de origem canadense que esteve detida durante vários anos em Guantânamo quando na realidade não existia absolutamente nada a lhe reprovar.

Nos Estados Unidos, as pessoas liberadas não tem recebido nenhum desculpa nem indenização. Atualmente há 5 advogados que trabalham juntos nos Estados Unidos e que estão encarregados da defesa dos interesses dessas pessoas seqüestradas. Isto dará lugar a toda uma série de ações judiciais contra o governo dos Estados Unidos.

Esta perspectiva dos fatos incita várias reflexões.

A administração dos Estados Unidos tomou decisões baseadas nas seguintes considerações: o terrorismo constitui uma ameaça tão grave que nosso país tem que considerar-se em guerra. Nosso sistema judiciário resulta completamente incompatível com esta guerra. Assim que, adeus à justiça, bem-vindos sejam a Guantânamo, às prisões secretas, acabaram-se os julgamentos e tudo o mais. Necessitamos obter a informação a qualquer custo.

Mas, quando se fala de “guerra”, tem que se falar necessariamente do direito da guerra. Quando se fala do direito de guerra, tem que se mencionar a Convenção de Genebra. E quando se fala da Convenção de Genebra, isso quer dizer que há que comunicar os nomes de todos os prisioneiros ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha e autorizar as visitas de seus delegados.

Porém, os Estados Unidos também consideraram que a Convenção de Genebra não é um instrumento adequado quando se trata de enfrentar o terrorismo. E elegeu uma terceira via, a via da arbitrariedade - não a da justiça, não do direito internacional -, uma via que nem sequer é aplicável no território dos Estados Unidos e que não é válida para utilizá-la contra os cidadãos estadunidenses. Portanto, estabeleceram uma espécie de sistema de apartheid jurídico. Obviamente se trata de um modelo que não tem nada a ver com a nossa sensibilidade nem com nossa tradição jurídica. E, no entanto, os Estados europeus aceitaram implicitamente este sistema.

Devagar, os fatos estão nos dando a razão. A maioria dos governos europeus, em um ou outro nível, colaboraram ativamente com os Estados Unidos na instauração dessa doutrina das “restituições extraordinárias”, com sua execução e com todo o que isso implicava. Ou o toleraram, o sabiam e não protestaram. Sim, houve alguns protestos mais ou menos corteses sobre o tema Guantânamo. Mas, no que respeita ao resto -”as restituições extraordinárias”, detenções secretas e uso de tortura – fingiram não saber de nada.

Quando tive conhecimento (do conteúdo) das atas da investigação italiana, fiz contato com meu ex-colega Armando Spataro, o fiscal adjunto de Milão, encarregado da investigação sobre o rapto de Abu Omar. Expressei-lhe minha convicção: não era possível que isso tudo houvesse podido acontecer sem a participação da polícia ou dos serviços de inteligência italianos. E essa era a sua opinião.

No mesmo momento, em Bruxelas, perante a Comissão investigadora do Parlamento Europeu, o chefe dos serviços secretos italianos, o senhor Nicola Pollari, fazia uma declaração na qual desmentia qualquer envolvimento no caso, onde dizia que nunca tinha sabido de nada e que não tinha colaborado em absoluto com esse tipo de atividades.

É importante que se saiba que hoje em dia o senhor Pollari foi destituído pelo novo governo e que comparece ante o tribunal de Milão porque se provou que os serviços secretos italianos, que ele dirigia, colaboraram estreitamente com os agentes da CIA no seqüestro de Abu Omar. Trata-se de fatos agora demonstrados: a primeira pessoa que se aproximou de Abu Omar, identificando-se como “policial” e exigindo-lhe “seus documentos” foi um agente do serviço de inteligência italiano, quem confessou. Segundos mais tarde, colocavam Omar numa camionete e entregavam-no aos agentes estadunidenses.

Pôde-se comprovar, noutros países também, até que ponto a colaboração com as ações dos serviços estadunidenses teve um caráter ativo. O que me impressionou durante esta investigação – talvez eu era e continuo sendo ainda ingênuo demais- é até que ponto os governos europeus mentiram e seguem mentindo, ativamente ou por omissão. Estão mentindo, ou, em todo caso, se recusam a dizer a verdade, e de consciência limpa (dizendo-se a si próprios o que fazem) pelo interesse superior do Estado; que há um secreto de Estado e que, portanto, se pode e se deve mentir.

Ontem foi a Promotoria de Munique que emitiu 13 ordens de arresto contra agentes secretos dos Estados Unidos acusados de ter seqüestrado Khaled O-Masri, cidadão alemão de origem libanesa.

Eu me reuni com Khaled O-Masri quando ninguém acreditava nele na Alemanha. Foi seqüestrado na Macedônia e transladado a Cabul, onde foi submetido a atos de tortura durante vários meses. Depois o levaram de novo à Europa, o liberaram em algum lugar da Albânia e, finalmente, ao fim de uma luta encarniçada, conseguiu-se demonstrar que Khaled O-Masri tinha falado a verdade, que foi realmente seqüestrado pelos agentes da CIA, muito provavelmente com a colaboração de agentes alemães.

Quando me reuni com o fiscal alemão, entreguei-lhe a informação que havíamos coletado na Macedônia. Ontem, a Promotoria de Munique indicou num comunicado que tinha conseguido seguir a pista dos 13 agentes da CIA, graças à cooperação e a informação coletada pela polícia espanhola, pela Promotoria de Milão e por mim mesmo, o relator do Conselho da Europa.

Digo isto, não é para me elogiar a mim mesmo senão simplesmente para demonstrar que, se uma pessoa – trabalhando com um colaborador só - pôde chegar a este resultado, teríamos podido chegar infinitamente mais longe na procura da verdade de ter existido a menor vontade por parte dos governos europeus, incluindo o suíço.

Minha convicção - embora não posso prová-lo ainda – é que os governos europeus assinaram acordos secretos com os Estados Unidos, possivelmente como conseqüência da grande comoção que provocaram os acontecimentos de 11 de setembro [6]. Isso explicaria, embora isso não seja uma desculpa, seu silêncio.

A Suíça não escapa da crítica. Os aviões pertencentes à administração dos Estados Unidos gozam de uma permissão anual de vôo. Esses aviões da CIA voam por toda a Europa. A maioria desses vôos servem para transportar o material logístico da CIA, que tem numerosos escritórios quase em toda parte. A Confederação renovou essa permissão de vôo mesmo sabendo que aviões da CIA muito possivelmente tinham abusado dessa concessão transportando Abu Omar, seqüestrado em Milão através do espaço aéreo helvético; o que constitui um ato criminoso que justifica em si a competência das autoridades penais do nosso país para procurar e castigar os culpados.

Quando lhe perguntaram ao Conselho Federal a quantidade de vôos e pousos dos aviões da CIA na Suíça, nos responderam que tinham sido 3 vôos. Uma hora depois dessa confissão, Amnesty International mencionava 4 vôos. Hoje sabemos que houve pelo menos 48 vôos. Isso demonstra que incluso por parte das autoridades suíças houve falta de vontade de tentar de procurar a verdade. Teríamos gostado que, no que diz respeito à quantidade e vôos, o Conselho Federal houvesse sido mais preciso nas suas respostas!

Como acabo de assinalar, o sobrevôo por parte de aviões que transportam pessoas seqüestradas é um crime que cai dentro da jurisdição da autoridade penal suíça. Teve que passar muitíssimo tempo antes que a promotoria da Confederação decidisse abrir uma investigação, apesar que o expediente dos magistrados italianos provou de maneira irrefutável que o avião que tinha sobrevoado a Suíça transportava Abu Omar. Quando lhe perguntaram ao Escritório Federal da Aviação Civil: “Tal ou qual avião sobrevoou Suíça em 13 de fevereiro de 2003?”, em seguida responderam: “Sim senhor, duas vezes; pela manhã, proveniente de Ramstein e com destino a Aviano, e pela tarde desde Aviano e com destino a Ramstein”. Eram o mesmo destino e os mesmos horários que no expediente da polícia italiana.

Pensamos, em conseqüência, que é quase certo que houve acordos secretos, mas que houve também uma política, interesses que prevaleciam por sobre os valores e os princípios políticos. Eu estou plenamente consciente de que o papel do governo é preservar os interesses do país, de que podem existir situações de conflito. Porém, e teria preferido, no pessoal, que em vez de mentir nos tivessem falado francamente: temos tantos interesses em jogo com os Estados Unidos que não podemos inimizar-nos com eles.

Isso tudo demonstra que tem havido, por parte das autoridades suíças, uma falta de vontade política de procurar a verdade. Hoje tenho a íntima convicção, repito, de que houve acertos secretos, formais e informais, entre os Estados Unidos e a Suíça, do mesmo jeito que com outros países da Europa. E se isso teria acontecido somente em nível dos serviços de inteligência, seria mais inquietante ainda.

Nestes últimos dias soubemos pela imprensa que a promotoria da Confederação, diretamente ou através da polícia, realizou atos de investigação em Guantânamo. As autoridades suíças transmitiram, portanto, às autoridades dos Estados Unidos listados de nomes e fotos de muçulmanos detidos na Suíça para obter informações sobre eles entre os detidos de Guantânamo. Isso equivale a aceitar que é possível sim arrancar informação mediante a tortura. Eu considero que isso é simplesmente escandaloso. Já que por um lado, nossa ministra de Relações Exteriores, a senhora Calmy-Rey, disse amavelmente à senhora Condoleezza Rice que a prisão de Guantânamo não é aceitável, que haveria que fechá-la, que é uma violação da ordem jurídica internacional: e por outro lado, nossas autoridades federais legitimam esse tipo de estruturas e as torturas que estas implicam mediante a realização de atos de investigação em Guantânamo, sabendo perfeitamente que as possíveis provas obtidas mediante o uso da tortura ou em prisões secretas não podem ser aceitas por nenhum tribunal na Europa.

Durante todo este período da investigação não raramente, me senti muito só. Mas, ironia do destino, hoje posso agradecer ao presidente Bush ter-me dado indiretamente um importante apoio quando, em 6 de setembro de 2006, reconheceu por fim, a existência das prisões secretas. A partir desse momento, meu relatório sobre os seqüestros e os vôos da CIA adquiriu singular importância.

Outro elemento alentador e positivo é o que acaba de acontecer na Alemanha, onde os 13 agente do serviço de espionagem americano que seqüestraram a Khaled O-Masri estão sendo acusados. Tem que acrescentar a isto o juízo de Milano assim como os passos da justiça espanhola que está reclamando acesso a todos os documentos dos serviços secretos espanhóis sobre os aviões da CIA. Em soma, acredito que uma dinâmica da verdade tem se colocado em marcha.

Também me surpreendeu agradavelmente a qualidade de certa ONGs nos Estados Unidos assim como o dinamismo que manifestaram certos círculos da sociedade civil. Se alguns fatos saíram finalmente à luz é em parte graças a essas ONGs americanas.

Resulta de importância primordial ter uma imprensa independente. Já se tinha visto até que ponto a imprensa está a serviço do poder. Tem um exemplo ainda mais claro: o do acondicionamento da opinião, através da imprensa, em favor da guerra no Iraque. Não pode haver verdadeira democracia sem uma imprensa independente, tanto do poder político como do poder econômico.

Um elemento totalmente fundamental é a independência da justiça. E quando digo justiça estou pensando também e sobretudo na promotoria. Se, neste caso, a Itália pode encontrar a verdade foi graças à independência do fiscal que conseguiu agir apesar da hostilidade do poder político. Segundo o sistema italiano, a promotoria é considerada como uma autoridade judiciária em todos os sentidos e os policiais que trabalham com a promotoria têm a mesma independência.

Insisto nesse ponto porque na Suíça o atual chefe do departamento de justiça e de polícia gostaria de ter sob sua exclusiva vigilância a promotoria da Confederação. Isso está acontecendo em meio à total apatia da classe política, que dá a impressão de não estar interessada nos problemas da justiça. Tudo isso me parece muito perigoso e creio que deveria haver uma reação.

A luta contra o terrorismo justifica estes meios?

Todos os dias vejo gente que diz: “Ah, o terrorismo é tão perigoso. Temos que aceitar a tortura porque pode salvar vidas”. Esse tipo de raciocínio me parece falso e extremamente perigoso [7].

É verdade que os terroristas são perigosos já que seu objetivo é destruir, por qualquer via, nosso sistema de democracia de valores ocidentais. Ainda assim, resulta chocante que para combater os terroristas nós mesmos renunciemos às instituições fundamentais do nosso sistema democrático, que renunciemos a esse princípio essencial que são os direitos humanos e a garantia de juízos justos, (que renunciemos) ao sistema judiciário. Fazendo isso estamos legitimando indiretamente toda essa gente que, ante essas violações, vivem hoje convencidos de que estão combatendo um sistema que é brutal, ilegal e que utiliza a tortura. E, o mais importante é que esses atos ilegais podem criar um movimento de simpatia em favor dos atos de terrorismo.

Quando colaborei com o grande chefe do anti-terrorismo italiano, o general Carlo Alberto dalla Chiesa, ele me disse: os terroristas são loucos furiosos, mas não são tantos. Tornam-se verdadeiramente perigosos quando há em volta deles uma corrente de simpatia. Isso os estimula, os motiva, os carrega de energia. Ilustrou suas palavras com a seguinte imagem: a simpatia é para o terrorismo como o oxigênio para o fogo. Estou convencido de que essa é a verdade.

O que também me chocou durante meu trabalho foi comprovar que há uma ausência total de estratégia no marco desta guerra contra o terrorismo.

Estados Unidos disse: Nem justiça, nem Convenção de Genebra. Damos total liberdade de ação aos serviços secretos e ao Pentágono.

Nunca houve debate, entre os Estados Unidos e a Europa, sobre a maneira como conduzir a luta contra o terrorismo. Mas também não houve nunca, no interior da Europa, um verdadeiro debate sobre a estratégia a ser seguida.

Além do mais, que eu saiba, não existe uma definição jurídica internacional sobre o terrorismo. Há convenções que falam do terrorismo, mas não há uma verdadeira definição do terrorismo.

Penso que possivelmente haveria que modificar, adaptar determinados mecanismos do sistema atual em matéria de processamento policial e judiciário. Mas, eu afirmo que a democracia e o aparato judiciário com os meios para enfrentar a ameaça que representa o terrorismo.

Eu acredito que há outras ameaças que são tão perigosas como o terrorismo. Refiro-me à corrupção, por não colocar mais do que um exemplo, que é um mal que está causando imensos desastres no planeta.

De resto, um verdadeiro instrumento de luta contra o terrorismo está em nível político. Estou completamente convencido que enquanto não resolvamos o problema da Palestina, enquanto não ofereçamos uma solução política e uma esperança de vida na dignidade a centos de milhares de palestinos, que nasceram, cresceram, que viram seus pais morrer presos no interior de um campo de refugiados, - e que perderam toda esperança -, continuará infelizmente havendo pessoas que estão dispostas a fazer-se explodir com uma bomba como temos podido apreciar ultimamente com essa avó em Gaza.

E como não queremos ter terroristas quando há guerras baseadas em mentiras?

O que me inquieta, no fundo, e o que me tem chocado profundamente em toda esta história é a indiferença, é a indiferença. Quantas pessoas me disseram: Por que faz tudo isso? São terroristas! Os estadunidenses têm razão. E depois acrescentavam: “São só muçulmanos”.

Que aberração! Penso que estamos cometendo um erro histórico criminalizando o Islã. Estamos empurrando todo um setor do Islã para o extremismo; um erro que, segundo temo, vai custar-nos muito caro.

“Há que combater a tirania com os instrumentos dos tiranos? ” Esse é o título que quis dar a esta palestra e será também minha conclusão. A frase não é minha. É uma frase que li num julgamento da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre um caso de terrorismo, na boca da juíza Sandra Day O’Connor. “Se o nosso país pretende seguir sendo fiel aos valores que simboliza nossa bandeira, não podemos combater a tirania com os instrumentos do tirano”.

Palestra ministrada em 1 de fevereiro de 2007 na Universidade de Neuchatel e publicada com a gentil autorização do autor. Transcrição de Silvia Cattori.

Versão em português: América Latina Palavra Viva.
http://www.alquimidia.org/desacato/index.php?mod=pagina&id=947

O artigo em espanhol pode ser encontrado em: http://www.voltairenet.org/article152666.html



[1«Alberto Gonzales, le juriste de la torture», Réseau Voltaire, 22 de novembro de 2004.

[3Leia o testemunho exclusivo «Carlos: comment et pourquoi j’ai pris en otage les ministres de l’OPEP», por Ilich Ramírez Sanchez, alias «Carlos», Réseau Voltaire, 18 de julho de 2006.

[4«Qui a vendu «Carlos»? », Réseau Voltaire, 18 de julio de 2006.

[5Na realidade, “Carlos” não foi extraditado senão seqüestrado pelos serviços franceses. É verdade que teve um julgamento justo, mas foi julgado como criminoso comum de guerra. Finalmente a Corte de Estrasburgo se declarou incompetente em relação a seu caso, portanto não pode usufruir desse recurso. NdlR.

[6De acordo com nossas informações, um primeiro acordo de princípios aconteceu em outubro de 2001 durante uma reunião do Conselho Atlântico. Depois, se negociaram acodos detalhados pelo Conselho de Justiça e de Assuntos Interiores da União Européia no marco da Nova Agenda Transatlântica, em janeiro de 2003.Ndlr.

[7Ver o dossiê da Rede Voltaire sobre a reanudação e promoção da tortura pelos Estados Unidos.